sábado, setembro 12, 2009

O Texto Sentido



Retirou os rascunhos do cesto. Temeu que ele os visse e lhe descobrisse a intenção. Concluíra que ainda não era hora, e, assim-como-assim, o original estava já devidamente guardado, para quando se lhe tornasse oportuno.
Os dias, há já muitos dias, que se lhe acabavam de forma precoce. Havia ainda luz, em muitos deles, quando naquele verão, se começou a retirar para o quarto, no que ele sofria ser, não o desenho do início do fim, antes os retoques, os finais, num quadro que há muito se pintava.
O jantar, o dessa noite, preparado em comum, partilhou também silêncio. Mais um silêncio. Afinal o mesmo, o que esse Verão lhes trouxera. Ele encarregou-se da louça, como fazia todas as noites. Haviam acordado assim, uns anos antes, na Primavera do seu amor; - Eu passarei a ferro, tu ficarás com a louça, aceitas? – Questionara-lhe. Ele aceitara prontamente; - Sim, aceito – Tal como num outro dia, num casamento simulado, sem padrinhos nem convidados, também a aceitara.
Adormeceu no sofá nessa noite, em frente à televisão. Já não sentia o quarto seu. Ainda assim, não iria deixar de se deitar ao lado dela. Não, não iria. No percurso para o leito, um copo de água na cozinha, quase lhe afogou a pouca coragem, que ainda tinha, para abrir a porta. Ela dormia. Tão ali, tão longe. - Talvez estivesse onde passava os dias. Com quem passava os dias, imaginou.
Ali deitado, tão próximos, o sono não lhe chegava. Ele precisava de saber o que os afastava. Ela não falava sobre isso. Na última conversa deles, ela dissera-lhe que era uma fase – Todos os casais as têm, certo? – Talvez, mas que interessavam os outros casais?...
Por isso levantou-se. E quis escrever. Ele escrevia. Só para si, escrevia. Versos tristes, ultimamente. E lembrou-se dos tempos em que os escreveu alegres, felizes. Esses versos que lhes foram os dias.
Algo nos seus sentidos, em todos eles, mais no sexto, talvez, lhe disse que a resposta, à crise deles, poderia estar junto daqueles versos; Os alegres, os felizes. Foi então ao escritório para reler essa felicidade, distante, que se encontrava agora fechada, atrofiada numa gaveta. Abriu-a. E tirou folhas, debaixo de folhas que estavam por baixo de folhas. E dentro da noite, já madrugada, deixou-se conduzir pelos escritos. Cada poema a um momento, devorado também, intensamente.
Mas uma das folhas não trouxe a sua letra. Trouxe-lhe um branco, o que isso possa ser, um frio ao corpo que lhe gelou as veias, que as ía congelando, à medida da leitura.
Só quando terminou de ler é que viu uma mancha, na mancha que era aquele texto. A lágrima, que nem se apercebera que caíra, havia borratado aquele texto, texto que acabara de lhe borratar o futuro. O texto chorava.
Pousou a folha. Na varanda esperava-o um cigarro. Depois outro. E ainda um terceiro, durante o qual decidiu que era tempo de fazer as malas.

Voltaria, durante a ausência dela, para recolher os seus pertences. Por ora levaria apenas alguma roupa, a suficiente para uns dias.

Tudo estava já no carro. Do mais importante, faltava apenas ele, lá. Resolveu fazer suas as palavras dela, daquele texto, e depois de assinar, colou a folha no espelho da casa de banho, onde ela o veria, no lugar do reflexo da sua cara. Ou talvez para lhe fazer ver que, afinal, aquelas palavras, iriam ser sempre para ele, de em diante, a cara que lhe veria!


"Talvez seja covardia minha. Se não encontrei outra forma, serei covarde sim. É-me menos difícil assim, e assumi menos difícil também para nós, assim, por escrito. Porque não soluço, assim. Porque não nos vemos as lágrimas, assim. Porque assim não verás as palavras que corrigi, antes de concluir que estas serão as menos erradas, as menos dolorosas. Porque todas as palavras seriam dolorosas, resistiram estas. Porque se falasse, estaria falado e a correcção do que se fala, nunca o é totalmente. Porque se falasse, elas, as palavras, me trairiam, me abandonariam a uma sorte muda.
Não querido, não entrou outra pessoa na minha vida, no meu coração. A minha vida és tu, há tanto, tanto tempo. Há tanto tempo, ou tão intensamente, que me esqueci que tenho uma, que tinha uma. Fizeste-me sair de mim, sem que o notasse, sem que o pedisses ou quisesses. E vivi a tua, tenho vivido a tua numa nossa vida. E foi bom, durante o tempo que não senti saudades minhas. E agora sei que a quero recuperar. No ponto onde deixei de ser só eu. No ponto onde me sentia insegura, antes de ti, antes de amar-te. E o meu amor por ti, ainda que possas não acreditar, aumenta, a cada dia, aumenta. E acovarda-me o receio de um fim, vindo de ti. Falta-me a confiança num "nós" eterno, na nossa mortal eternidade. Por isso parto, meu querido. Porque não posso amar-te mais, para que possa amar-te para sempre! E quero muito, querido, eu quero muito e vou, sim, vou amar-te no meu sempre."

18 comentários:

  1. Existem folhas que carecem que se lhes acrescente uma letra só que seja...

    Esta tua folha simplesmente consegue que te diga que também uma lágrima rasgou este meu comentário.

    Lamento não te dar palavras, porque existem momentos, que os silêncios são mais oportunos.

    Beijinho!

    ResponderEliminar
  2. andava eu às gargalhadas, enquanto comentava o teu post abaixo...

    cheguei a este (sim, comecei de baixo para cima, uma vez que nao vim aqui nas tuas ultimas publicaçoes)quis ler sem nenhuma interrupçao.
    e quando cheguei ao fim, apenas senti as lagrimas escorrerem-me na cara...
    ainda bem que foi para o teclado, caso contrario manchava o pc e a mancha podia nao sair mais :S

    Às vezes a vida, é cheia dos porquês... e pergunto-me de facto, o porquê do sentimento acabar...
    quer dizer, dizem amar para sempre, mas que nao o/a podem amar mais :S:S??

    beijinho

    ResponderEliminar
  3. Não comentei este texto a primeira vez que o li. O nó na graganta estendeu-se aos dedos e não consegui. Nem a segunda. Nem... Este, não se comenta. Sente-se. Escrever o que quer que seja parece-me supérfulo!

    Como se sente alguém tão ali e tão longe? Eu sei como, claro. A minha pergunta não é essa, é mais como isso pode acontecer, como deixamos que isso aconteça? Tão comum, essa sensação!

    Antes, não conseguiria entender esta carta, conceber a ideia que duas pessoas que se amassem não pudessem estar juntas. Hoje, sei que isso é possível, embora ainda me custe aceitar a ideia. Embora ache que teimamos em complicar o que é simples, mas em que é necessário que os dois tenham o mesmo significado para a palavra simples. Porque amar, amar deveria ser simples. Amar não deveria significar partir, deixar o amor para trás.
    Conseguir-se-á ser feliz deixando esse amor,"porque não posso amar-te mais, para que possa amar-te para sempre!"?
    Claro que numa relação, cada um não deixa de ser ele próprio, ou não deveria. Amar não significa deixar de existir por alguém, significa passar a existir para alguém.

    Mas, que sei eu sobre isto?? Nada!

    Beijinho, Gemini

    ResponderEliminar
  4. Olá Pepita, Olá Soraia, Olá Nirvana!

    Hoje reuni-vos na mesma resposta aos vossos comentários ;))

    Mas há um motivo válido!

    Não será por acaso que, na sequência do conteúdo deste meu texto, os primeiros 3 comentários sejam de três meninas! (Onde se lê "meninas", poderá ler-se também "Senhoras", assim, com "S" maiusculo, à medida da vossa grandeza!)

    E não será por acaso porque, dizem e eu concordo, maioritariamente, as "meninas", nestas matérias, são mais sensíveis do que os "meninos. (Que também os há, e alguns muito mais sensíveis do que muitas meninas bastante sensíveis, atenção!)

    Mas tenho de alertar-vos para um pormenor, (que me regozija bastante, apesar de tudo) muito importante e que pode fazer toda a diferença na análise a um texto;

    É que esta situação, descrita por mim no texto, eu não vivi naquilo a que chamamos "a vida real". Bem que poderá já ter acontecido a alguém, algo igual ou muito parecido, e eu interpretei, (posso tê-lo feito erradamente) que vocês o entenderam como um relato de uma situação veridica. Não o foi, comigo. Foi um cenário, que vejo como extremamente possível de acontecer, sem dúvida, mas que é apenas uma estória, saída cá de dentro.

    Quero pedir-vos desculpas, mil desculpas, se vos terei induzido em erro, aqui um erro de interpretação, cuja responsabilidade será totalmente minha. Minha porque já aqui publiquei outros textos, relacionados com este tipo de asunto, cuja veracidade, ao nível dos acontecimentos, é total.

    Mea Culpa, portanto, e espero sinceramente pelo vossa compreensão e desculpa!

    Um beijinho Pepita,

    Um beijinho Soraia,

    Um beijinho Nirvana.

    ResponderEliminar
  5. Às vezes amar é partir ou deixar partir...

    ResponderEliminar
  6. Gemini
    Não seria impossível pensar tratar-se de uma situação real. Afinal, encontros e desencontros compõem a vida e se alguém consegue traduzir sentimentos, "sentires" em palavras, és tu.
    Mais importante, é a mensagem que passa. Ou pelo menos, que passou para mim. Que o amor vai mais além do que simplesmente amar. Que podemos amar alguém, mas nunca deixarmos de nos amar a nós. Que amar não pode nunca significar deixar de existir por alguém, significa passar a existir para alguém. Que às vezes amar não é suficiente. Às vezes, amar significa libertar, nem que para isso a nossa alma fique presa, ...

    Beijinho, Gemini

    ResponderEliminar
  7. Gemini, o texto não me importa absolutamente se é real ou se é ficção. É verosímil! E isso aqui é a realidade. Não desejo bater-te à porta para te dar um abraço ou confortar-te os desgostos.

    Não perde para mim o valor por nada do que explicaste aqui nas caixas, tu nessa "realidade" que de repente evocas tens morada e telefone e chamar-te-ás Gemini "qualquer-coisa". E esse senhor, de facto nunca me foi apresentado.

    O que conheço é um autor fantástico, que me dá momentos de absoluto prazer com uma escrita absolutamente divinal como é esta peça de génio, exactamente porque não tem lapsos, nem falhas.

    Mostra que conheces bem a vida, o amor, a paixão, os sentimentos.

    Posso adiantar-te que já andei perdido por caminhos desses. Mas na altura tinha vinte e tais.

    Talvez tenhas razão noutra coisa, talvez (nota bem), as meninas saibam melhor explicar essa atitude do que os meninos. Exactamente porque a minha forma de resolver a situação que me foi apresentada não por carta mas cara-a-cara, na vida real e há muitos anos, foi determinante para que o desfecho acontecesse segundo os meus desígnios. Recusei-me a conformar-me com a coisa naqueles moldes, e ainda bem que o fiz. E estou certo que nenhuma menina o faria da mesma maneira que eu, não por incapacidade mas porque as hormonas jogam noutros sentidos.

    Um abraço Gemini.


    P.S.: Ainda em relação ao que comentaste... Como depreendes, há laços muito fortes nestas caixas, há quem dê, por isso, um nome a uma personagem e deixe a história fluir assim sem equívocos. Mas são opções individuais e o teu texto provavelmente perdia o brilho se tivesses ido por esse caminho... Assim como está, sei que está fantástico, e garanto-te que foi das melhoires coisas, na minha modesta e suspeita opinião, que já aqui puseste.

    (Desculpa o tempo que demorei a vir cá, mas gosto de ler quando posso, e "ler" para mim é "bem".)

    ResponderEliminar
  8. Ai Gemini, Gemini...

    conseguiste mesmo fazer-me acreditar que era um texto teu...

    mas tambem te garanto, mesmo percebendo que este texto nao se tinha passado contigo, nao conteria a lagrima.
    apesar de ser sensivel nestas coisas (às vezes nao nos favorece), o meu pensamento vive logo o texto, tal como se fosse eu a viver essa situaçao (qualquer uma de nós, julgo)...

    Afinal nenhuma de nós, está livre disso (com melhores ou piores palavras), ninguem está livre...
    e apesar de estar bem, se o meu pensamento ocupa logo essa personagem, o meu estado tambem poderá mudar :S

    mas pronto, ainda bem que este "desgosto de amor", nao foi com alguem à qual admiro muito (virtualmente :P)

    beijinho :)

    ResponderEliminar
  9. Olá E...

    Pois, meu amigo... Há que saber ler nas entre-linhas! E nem sempre é fácil fazê-lo!

    Um abraço!

    ResponderEliminar
  10. Olá Nirvana!

    É isso mesmo, o que dizes!

    Cabe a cada um fazer o exercício de avaliar os prós e os contras. De saber em que medida é que estamos dispostos a entregar algo de nós, que será também em função do que teremos para receber.

    É um "bem" tão precioso, que nos joga com a (in)felicidade de tal modo, que tendemos a antecipar-lhe os resultados... E é isso que nos limita as "jogadas". Depois... Depois há quem resolva não ir a jogo!

    Um beijinho!

    ResponderEliminar
  11. Olá CybeRider!

    Por vezes embaciam-se-me os óculos. Mas por aqui, pelo menos, aparece sempre alguém que, delicadamente, me faz ver que não estou a ver com clareza! Isto no que toca aos dois primeiros parágrafos do teu comentário!

    Quanto ao terceiro (parágrafo), devo dizer-te que me é bastante reconfortante receber de alguém que (não é segredo nenhum) tanto admiro, muito além dos pontos de vista, o modo como os expõe, tamanho elogio!!!

    Pois é Cybe, a situação cujo desfecho aconteceu sob os teus designios, também se terá verificado assim talvez porque no lugar de uma "cara", ouve efectivamente uma cara, não uma folha "pregada" a uma parede, que provavelmente poderia ter designado outros desfechos, mas isso nunca o saberemos.

    Quanto aos nomes das personagens, tens absoluta razão no que registas!

    E afinal (aprendi com alguém), os nomes, reais ou virtuais, não dizem de facto quem somos!

    Um forte abraço, CybeRider ;))

    ResponderEliminar
  12. Como sempre fico fascinada e emocionada a ler o que escreves...
    Adoro a tua escrita :)

    ResponderEliminar
  13. Olá Soraia.

    Mas o texto é meu, Soraia! ;)))

    Só não foi "vivido". Mas não deixa de ser meu.

    E olha, deixa que te diga que fico muito contente por te saber triste, caso esta dor fosse minha, na realidade!

    Um beijinho.

    ResponderEliminar
  14. Olá Mimanora!

    Há pessoas que só possuem paixão pela leitura e nem tanto pela escrita, mas as que escrevem, é automático, adoram igualmente ler. Eu escrevo umas coisas, estas que por aqui se podem ler. E, na condição de apaixonado pela escrita e igualmente pela leitura, quero dizer-te que, comentários como o teu, são "música para os ouvidos"!

    Fico muito contente que gostes!

    Um beijinho!

    ResponderEliminar
  15. Só posso dizer... belíssimo.
    Parabéns.
    Beijo

    ResponderEliminar
  16. Olá Mag!

    Confesso que senti a tua ausência!

    (Terás os teus motivos que respeito incondicionalmente, mas para que saibas ;) )

    Vindo de ti, uma contadora de histórias por excelência, que como sabes tanto admiro, este "belíssimo" tem um sabor especial!

    Agradeço os teus parabéns e quero dizer-te que me alegra muito saber que gostas.

    Um beijinho.

    ResponderEliminar
  17. "Por isso levantou-se. E quis escrever. Ele escrevia. Só para si, escrevia. Versos tristes, ultimamente. E lembrou-se dos tempos em que os escreveu alegres, felizes. Esses versos que lhes foram os dias."
    Afinal, se todos os versos fossem alegres, grande parte dos sentimentos presentes nos vários versos e que nos fazem realmente apreciar uma obra, não nos seriam transmitidos. Neste teu texto, esses sentimentos provocaram em mim uma série continua de arrepios! O que é muito bom, pois eu praticamente vivi o teu texto, tocou muito*

    Beijinho :)

    ResponderEliminar
  18. Olá Carolina Cunha!

    Os "desencontros" parecem ter o condão de nos inspirar mais que os "encontros". E parecem também ser mais comuns às pessoas! Daí os arrepios, talvez.

    Já reparaste que pouca gente escreve a "alegria"? - Tantas vezes tendemos a esconder-nos no "nosso mundo"!...

    Beijinho, bem-vinda a esta casa ;))

    ResponderEliminar

A "ler" é que a gente se entende.