Saía cedo para o trabalho e tarde chegava, vindo dele. No início era o trabalho, que o afastava dela, que o afastava deles. Ela era a esposa de sonho, do dele, que todo o homem quer. Com umas costas largas, assim do tamanho da cama, aquela onde já mal se cruzavam. Ela compreendia-lhe o madrugar para o emprego. Coincidência ou não, a promoção tinha surgido com o casamento. Como num inicio quase tudo são rosas, o casamento também o é. Então ele pôde contar com o apoio dela, para se entregar de corpo e alma, mais de corpo, ao seu novo cargo. Ele sempre pudera contar com ela, mais do que ela com ele, durante o período de experiência que é o namoro, antes de assinarem o contrato que é o casamento. Um contrato onde se incluem de forma estranhamente consciente, clausulas que não se vão cumprir.
E durante muito tempo também lhe compreendeu o serão, para o trabalho. – Se fosse ao contrário, a posição deles, de certo que ele também compreenderia.
Mas o madrugar dele tornou-se mais pesado, mais difícil ao fim de uns tempos. Por consequência mais tardio. Foi na altura em que, para casa, levava cravado na roupa um intenso cheiro a tabaco e se deitava com um forte bafo a álcool. Isto veio a trazer-lhe solidão ao acordar. Na cama estava só ele de manhã, mas isto nada lhe disse. Durante meses, a hora de deitar dele foi o despertador dela. Até que chegou a noite, a primeira, em que já não se deitou naquela cama. A cama onde ele já não lhe iria despertar a dor.
Os serões de trabalho há muito que terminavam num bar. Ou noutro. Se nas primeiras vezes lhe era politicamente correcto acompanhar os novos colegas, da direcção da empresa, num copo social, agora era ele quem convidava. E em algumas ocasiões chegava mesmo a ir sozinho. Agora ainda mais. Porque a sua esposa, agora, já não era sua mulher.
Ela adora flores. Há quanto tempo não lhe ofereço flores?... – Pensou – O que tenho eu andado a fazer?...
Deu ordens à Secretária de Direcção para que encomendasse um belo ramo de rosas. Sabia ir ser difícil o perdão. Preparou-se para o não.
Chegou cedo a casa nesse dia. Mais cedo do que o cedo que seria se chegasse à hora normal de saída do emprego. A ansiedade canalizou-lhe toda a concentração para aquele momento. Não a encontrou no lar. Não só por aquele tecto já não o ser, mas porque ela não estava. Ainda a procurou, por todas as divisões, encontrou-lhe o telemóvel que concluiu esquecido. No instante em que lhe pegou sentiu um aperto dentro do peito. Algo lhe disse num segundo que haveria ali algo que não iria gostar de ver. Resistiu um minuto. Nunca se tinham feito nada parecido. Nunca houvera motivos para desconfiarem um do outro. Mas antes de desbloquear o teclado do aparelho, vislumbrou de relance, tal como tinha feito nessa tarde, o seu comportamento dos últimos meses. Não gostou do que viu na sua mente. Sabia que não ía gostar do que ía ver no celular.
Acedeu às mensagens, onde pôde ler um: " Às 16h e 30m, fofinha. Apanho-te às 16h e 30m. E reclamarei então o beijo que te dou agora. Até logo."
Sentou-se. Na cama onde nunca se deitaram juntos. Desapertou o nó da gravata. O da garganta não conseguiu desfazer. O seu comportamento vinha sendo inqualificável, mas não a traíra. Não com uma relação paralela, não com outra pessoa, outro amor.
Deixou tudo como encontrou. Iria sair sem que se notasse que havia estado em casa. Iria simular um regresso em tudo igual aos dos últimos meses. Em tudo menos no bafo a álcool e no odor do tabaco na roupa. Colocou-se estrategicamente para que, ao vê-la chegar, ela não o visse. Foram horas que pareceram dias. Mas ela chegou. Num carro de um ele que não conhecia. E viu um beijo de que já esquecera o sabor. Ela entrou em casa. Ele entrou em desespero.
Conduziu para longe. Dos bares, principalmente. Queria falar com ela sóbrio, mas com o sangue temperado. Não sabia se ele lhe gelava ou lhe fervia nas veias.
A luz da reserva acendeu. Atestou o depósito e seguiu para casa. Ela estava deitada, já. No quarto que fez só seu. Perante a falta de coragem para a acordar, recorreu à caneta e ao papel. Por vergonha. E deixou o bilhete na mesa da cozinha, bem junto ao ramo de rosas.
"Todo eu sou uma vergonha. Não te mereço, não sou digno de ti. É todo teu o direito ao divórcio. Dar-to-ei sem criar problemas porque vi no teu beijo desta tarde que é o que desejas e o melhor para ti.
Sê feliz, minha querida que não soube amar. Perdoa-me por me teres traído."